Uma mão aberta, um tronco, os olhos que se esquivam por detrás de um espelho. Se não fosse o branco das paredes tudo sucumbiria. Mas quem fala sobre o branco, sobre o lugar onde a mão larga agarra o tronco? Só o que se partilha cresce. Nada de mais próximo, nada de mais distante do que duas almas que se amam. Destrói a tua casa e constrói um barco, digo-te.
Os teus cabelos negros são os laços que me atam e desatam, que me arrastam. Bicho do mar, ave subitamente esvoaçando no ar, tu ergues-te sobre a minha melancolia. A tua boca é a minha entrada para a asfixia. Porque vagueias tu pelo deserto em busca do vento? Porque persegues a tua sombra? Não encontrarás essa vida que procuras, porque nada permanece.
Do longe chega uma vontade de chorar sem que se saiba o motivo. O tempo, que tudo promete ao esquecimento, quando virá ele em meu auxílio?
O teu corpo, luz sobre a cama. A escuridão chegará de um momento para o outro e tu perdes-te, minha amada, sobre os lençóis num sono que enche a noite. Enroscada como um animal perigoso que ao menor toque atacaria, a luz dos olhos fechada sob as pálpebras docemente descidas. Ainda se vê, no escuro, o seu fulgor. Não sei onde está aquela que eu persigo, por onde se passeia, erguida e nítida, quais os desejos de que se alimenta e os prazeres de que se constrói. Não sei que paisagens a acolhem, que língua humana fala. O teu corpo despido, estendido a meu lado, preste o ataque. Tão frágil que me impede de lhe tocar. Um imenso desejo. A noite toma-te sem fazer perguntas.
Perigos numerosos rondam os viajantes à procura do amor. O esquecimento, o desgaste dos dias, as pequenas coisas que ficam por fazer. Os cavalos estão cansados, não querem seguir para nenhum lado. Só a procura vale a viagem. Os homens giram em tua volta e permanecem mudos. É bom, com uma mulher, unir-se com ternura.
No tecido antes perfeito o rasgão irreparável. O que nos une é o que nos separa. O mais seguro é escapar para o lugar de maior perigo. As palavras são suspiros. Vou sozinho como uma sombra. Partir sem saber quando, ou como. Se não fosse a cega coragem por onde seguiríamos? A viagem que fazemos não é nossa, outros a começaram, outros a terminarão.
A minha querida permanece deitada sobre os lençóis, o doce corpo tapado pelos cabelos negros, os delicados pés fora da cama. De que falarão as senhoras sentadas na mesa vizinha? Da minha solidão?
Nada haverá mais do que isto: vozes, pedras, luz, um braço que se estende. Aves cruzando brancas nuvens à deriva. Estranha é a nossa condição. Como se fossemos daqui. Vozes, pedras, luz. Seres mudos que não falarão.
O meu último pensamento desconheço. O primeiro és tu, claro dia. És tão bela! A teus olhos, respondias.
As ruas de Nova Iorque pertencem-te porque as conquistaste, uma a uma. Aqui deste lado não poderias ser quem eras, quem serias. Fugis-te de um mundo pequenino, de uma asfixia. Não é fácil fazer-se um destino. Agora não sei onde estás, quem amas, quem te ama, onde dormes. Não sei se andas triste, se com um leve sorriso a suspender-te os lábios, se o tempo te tem sido clemente. Agora de ti não sei nada. Não desejo saber nada. Basta-me lembrar-te como quem recorda uma música e com ela chegam coisas cravadas de um outro mundo. O teu corpo já não é o teu corpo de menina. Quando estava furioso dizia-to, que seria essa a vingança. Talvez só a tua voz permaneça a mesma. Eu quis-te com uma violência que desconhecia. Tu levaste-me para paragens inóspitas, repletas de perigos. Por ti senti pavor. Por ti senti raiva. Por ti senti desespero. Entre nós havia sempre uma impossibilidade, um vazio. Tu eras em tudo um bicho indomável. Nunca te oferecias. Era preciso ir buscar-te aos lugares mais secretos e depois do prazer batias-me com violência no peito. Estou a ver-te, desastrada, a jogar à bola na praia junto ao mar que te louvava. Estou a sentir a tua pele muito quente por debaixo do vestido tecido de linho, o meu favorito. Estou a olhar para os teus jeans colados às tuas esguias pernas que fechavas e abrias ouvindo aventuras que adoravas. Tive de inventar a fotografia para te capturar em imagens interditas. Para que fosses por fim minha. Tenho de ir já tomar um ansiolítico. A tua ausência, pelos vistos, ainda me sufoca.
Pareceu-me conveniente alugar dois quartos de hotel. Isto é, um quarto em dois hotéis diferentes, propositadamente afastados um do outro. Num tirava as fotografias, no outro procurava o sono, o esquecimento. Não queria confundir as coisas e era de longe mais seguro.
Alison, o meu motorista alugado que já conhecia de outras expedições, procurava-me os modelos em bares, saunas e mesmo na rua ou na praia. De cada um tirava uma polaróide onde escrevia o nome dela e o seu contacto. Eu pagava bem, cem dólares por hora. Alison entregava-me as polaróides num envelope fechado que eu levava para o quarto onde o abria e as espalhava sobre a cama já com a excitação de um predador diante de novas presas. Várias daquelas polaróides já eram por si interessantes, o que nunca lhe confessei. As raparigas procuravam uma pose, exageravam um sorriso, mostravam um seio. Era-me difícil escolher porque é sempre difícil não nos enganarmos. As minhas preferidas, quer o fossem pela beleza suave da cintura, pela melancolia perdida do olhar, ou por um defeito visível que me acendesse o desejo, levava-as primeiro a jantar num ou noutro bom restaurante. Era vital para mim ouvir-lhes a voz, avaliar-lhes a inteligência das palavras. Eu parecia perseguir simples corpos, mas o que eu cobiçava era captar almas encerradas em corpos nus. Isso, creio eu, é o que faz uma boa e verdadeira fotografia, que nunca é uma mera imagem para ser vista exclusivamente pelo olhos. É preciso trazer o coração à boca. É preciso ficarmos abalados, a tremer. De resto os corpos por si são só cadáveres adiados, sem interesse algum.
No jantar, ao explicar-lhes a minha profissão, procurava cativá-las. Um modelo seduzido é logo um corpo que se dá esquecendo o dinheiro e o tempo. O dinheiro também aqui pode estragar as melhores intenções. Tenho por princípio nunca falar de dinheiro, embora se saiba que há sempre dinheiro e quanto mais melhor. Combinávamos o dia e a hora do nosso encontro em que qualquer coisa, ou mesmo nada, podia vir a acontecer. Se tinha mais de um modelo por dia, o que raramente acontecia, reservava pelo menos quatro horas de intervalo. Fotografar esgota, requer um imenso esforço de concentração, de penetração do olhar, de atenção à mínima mudança de atmosfera, de luz tanto física como psíquica. A cabeça não pára de girar, de procurar, e os corpos nos melhores momentos da sessão, não são mais que o longo arrepio que os percorre. E depois há as palavras aladas. Eu não paro de falar, de as excitar, dizendo-lhes tudo o que me passa pela cabeça como numa confissão, ordenando, suplicando. Ao excitar alguém a alguma coisa já era eu quem era excitado pela mesma. Era forçoso que também eu surgisse na fotografia, já que era eu o fotógrafo. No ideal o fotografado funde-se com o fotógrafo numa fotografia. Afinal o que era aquilo tudo senão uma outra vida a ser vista pelos meus olhos, a união do que é visto com o que vê, num momento imobilizado, fora do jugo dos minutos. Era esse o jogo. Um jogo perigoso. As nossas vidas para sempre confundidas.
Era disto que eu falava às raparigas quando já as tinha presas no espaçoso quarto de hotel onde as fotografias se faziam a si próprias. Ou logo pela manhã, ou então ao entardecer avançando pela noite adentro. Usava várias máquinas para um só motivo, um só detalhe. Tinha de ser rápido como uma seta no ar, aquilo pelo qual ansiava era fugidio, tentava escapar-se como uma verdade que só, de quando em quando, se desoculta e prefere ficar na escuridão onde não habitam as formas. Era essencial dar-lhes toda a liberdade, fazê-las sentir em casa num mundo estrangeiro, dar-lhes permissão de quebrar qualquer limite, de se superarem. As poses são sempre falhadas tentativas. O que parece não ter importância, um gesto descuidado, um olhar perdido, um sexo que se destapa sem querer, é o que tem importância, é um sinal de vida verdadeira. A modelo tinha que me trazer um excesso de vida, que por sua vez se reflectia na sua fonte, num ciclo que levava ao turbilhão, à perturbação, quase à loucura. Era nessas margens que me sustinha, perto de um desmaio, sinal de morte que está por detrás de tudo e tudo envolve. Sim, nos melhores momentos já não era eu que estava ali. O manipulador tornava-se o manipulado. Modelos havia em que ela, a morte, se fazia sentir mais presente como um castigo dos deuses. Num fechar e abrir de olhos a morte fixa em papel a vida. E entre a vida e a morte o sexo era uma só passagem, a passagem imperiosa. Fazíamos curtos intervalos, para beber água, engolir uma fruta. Depois continuávamos. A partir de certa altura a modelo ideal já não quer parar nunca, deseja o esgotamento, procura-se a si própria sem receio de estar assim tão perdida, esquece-se que tem um nome, excede-se. Sabe que algo misterioso se passa para além do que os olhos vêem num golpe de magia. Também havia modelos que eram uma simples desilusão, a maior parte, e que eu fotografava por polidez e depois informava de um problema técnico com o qual as despedia. Não se pode ter tudo. Existem as fotografias invisíveis.
Quando chegava ao segundo hotel, conduzido pelo meu motorista e colaborador, estoirado, subia imediatamente ao meu quarto. Vinha com medo do mundo, de mim próprio. Se estava sozinho engolia dois ansiolíticos e metia-me na banheira a ferver. Quando nele encontrava, tarde na noite, a minha delicada esposa adormecida, retirava com todo o cuidado o lençol que a cobria e masturbava-me devagar, em silêncio, sobre o seu corpo. Só o calor do meu sémen, atingindo-lhe a face, a despertava. E ela sorria com o despontar de um novo dia.
A casa frente ao videoclube vai ser abandonada. O que se puder salvar será transportado para outra casa. O que couber dentro de caixas, dentro de caixas: os livros lidos e por ler, os copos, as louças, os talheres. O que não couber dentro de caixas será transportado aos ombros de estóicos escravos: os quadros, o frigorífico, a máquina de lavar, os tapetes, as camas com os respectivos colchões. O piano, esse, voará pelo jardim. As coisas serão arrancadas do seu lugar, deixarão buracos, melancólicas falhas. A força da gravidade será, uma vez mais, cruelmente vencida. O que se não puder salvar ficará a habitar – sabe-se lá como e até quando - a casa doravante vazia. O que não se puder salvar é o mais precioso. As palavras - derrotadas e gloriosas - finamente sobrepostas camada sobre camada. Um gesto aflito e logo outro meigo. Uma perseguição pelos corredores da casa. O sono profundo do esquecimento. Os gritos misturados, tanto de dor como de prazer. E a semente do fogo. O fogo já lá estava desde o começo de tudo.
A casa frente ao videoclube não devia ser abandonada. Devia ser arrasada, incendiada, oferecida em sacrifício. Ninguém poderá narrar a história de uma casa que foi túmulo de tantos desejos e insensatas ambições, antro de vícios e teatro de prazeres, gruta e refúgio de desvairados poetas, inúteis seres. Uma casa que ainda ouviu Píndaro falar em grego, onde se rezou a Jesus de joelhos no chão, que foi roubada por ladrões encartados e outros menos peritos. Uma casa onde alguns enlouqueceram e depois ficaram lúcidos e, outros, lúcidos enlouqueceram. Onde muitos se embriagaram de vinho e fumos e poderosos licores. Onde alguém se quis matar e não o deixaram. Uma casa onde a beleza era uma deusa antiga que surgia quando bem queria e sob os mais variados disfarces: suave música, excelentes versos, asfixiantes corpos nus de mulheres. Uma casa por vezes assolada por ventos de desordem e tumulto - um espectáculo medonho - e depois recomposta numa harmonia em que o resultado era atingido. Uma casa vertida em lágrimas, atingida pela dor, e depois despedaçada por fortes gargalhadas em que se fazia pouco da burocracia do mundo, da mesquinhez da multidão. Viva, e depois morta, para de novo poder renascer quando menos se esperasse.
Nada restará da casa frente ao videoclube.
Se possível mantém os óculos escuros. Se há fila faz de conta que se interessa pela banca dos jornais e revistas e sente uma crescente náusea invádi-lo. Quando chega a sua vez pede a garrafa, dois maços de SG ventil e atrapalha-se a pagar sem olhar os olhos de quem tem à sua frente e trabalha. Sai rápido, o saco de plástico nas garras da mão.
Usa uma estratégia. Pretende continuar indefinidamente anónimo. Vai duas vezes à mesma bomba. Depois muda para outra, depois ainda para uma terceira. Só então volta à primeira. Evita os mesmos turnos e prefere empregados estrangeiros, em particular eslavos. Um, Slava, é o seu preferido. Tem uma cor de pele rosada, a cara rechonchuda, um sorriso constante, a família retida na Ucrânia. Julga encontrar nele uma compreensão que não precisa de ser dita e sente-se mais à vontade com o seu vício.
Por vezes hesita. Receia encontrar alguém seu conhecido. Ao meio dia é revelador comprar aquela mercadoria. Já ia sendo apanhado por uma vizinha. Há dias em que percorre quatro bombas de serviço, não entra em nenhuma, pára junta à estrada, pousa os braços no volante, a testa nos braços e chora. Por pouco tempo. Com raiva, decidido, recomeça a caça.
Sente alívio ao arrancar com o carro. O saco leva-o no banco do lado, pousando sobre ele uma mão que o segura como a um bebé, não vá ele escorregar. Em casa, vitorioso, bate com força a porta atrás de si, pega num copo alto e fecha-se no quarto onde se deita de lado com a garrafa já aberta e um largo cinzeiro para o que vai restando dos cigarros encarquilhados.
O telefone desligado, as cortinas corridas, começa a longa viagem em si próprio. Minúcias da infância, a bicicleta verde com a qual desce velozmente ladeiras na aldeia que já não existe, aventuras empolgantes revividas com renovado perigo, corpos de mulheres revisitados, sem excitação, é certo, mas com o espanto de continuarem tão belas mortas na memória, escolhas que implicaram escolhas que teriam sido outras se fossem distintas, simples acasos que levaram a outros. Tudo por um nada podia ter sido diferente, uma vida inteira. Beber devagar é um jogo demorado em que o eu se ocupa unicamente consigo próprio esquecendo o mundo agreste, incontrolável, estilhaçado, que persiste sem razão em demorar-se lá fora. É a vitória decisiva sobre o tempo que fica derrotado, esse fardo que lhe quebrava os ossos. E, de quando em quando, ri alto de tudo como se fosse um menino rabino.
Só bebe sozinho. Sem testemunhas. Nos braços da melancolia. Tudo o resto lhe parece desperdício, perda de tempo. Mesmo a conversa com alguém sábio porque deixou de acreditar na humanidade, ou um convite para um concerto porque há muito que ouviu Bach de um modo tão intenso que se tornou eterno, e todas as viagens lhe parecem entediantes passeios por sítios que não deixam de ser sítios já visitados. Continuará, portanto, a beber sozinho.
Só, por vezes, por descuido, quebra esta regra e sai. Acontecem coisas espantosas, das quais depois não se lembra e por isso, de algum modo, não existiram. Contam-lhas e fica espantado: como rompeu o colar a uma escritora da moda ao abraçá-la de modo efusivo num restaurante caro; como tratou por falsário um ministro das finanças antes seu amigo de infância; como foi expulso de um bar por desacato; como foi apanhado a mijar na lareira de uma sala de visitas de uma nobre família. Vergonhas. Mais vida para abafar. Só a morte lhe interessa.
Enquanto não se convencer ou não lhe disserem que um deus sobreviveu não encontra motivo para ser de outra maneira. É um modo pouco espalhafatoso, melancólico, de se ir despedindo deste mundo, para o qual não foi chamado e no qual sempre se considerou um intruso.
Aos poucos começa a beber, o que lhe mata a dor, até que, por fim, o desmaio de novo chegue.
Quando passo ao de leve pela minha vida tudo ganha sentido. Mal paro, tropeço. Não posso parar. Bom é este fim de tarde doce e azul sem fundo que resplendece no ar. Tudo se torna suave e sei que sou parte inteira deste universo que, a esta hora, se mostra assim.
Queres saber onde estou? Estou no lugar onde qualquer pessoa que foi amada se encontra. No mexer, no sussurrar, na entrega, no incansável prazer, na alma a dois. Lindo é o meu amor nómada que não pára de fugir de paisagem em paisagem e me vem visitar sempre que o não espero. Para sentir bater mais forte o meu coração que ele envolve como uma serpente. E o meu sexo nos seus dentes.
Vem ter comigo que eu não espero mais.
Há quem persiga o poder, o dinheiro, a fama. Eu persigo a beleza. Não é uma escolha. É uma condenação. Sem beleza faleço. É um trabalho difícil, muitas vezes doloroso, cheio de revezes. Já passei dias e dias com as mãos na garganta apavorado que ela não volte a visitar-me. É difícil dizer o que é aquela poderosa presente ausência que nos oprime e agarra. Nunca está onde está, mas sempre um pouco mais longe, noutro sítio. Não são cores, imagens, sons, nem sequer a suave pele de uma mulher que me encantam. É o que está para além disso e que isso chama. A beleza corre o permanente perigo de a qualquer momento se desfazer em nada. É, na verdade, por completo insustentável. Não se pode medir, calcular, torná-la obedientemente exacta. É impossível provar que existe. Daí a urgência, o coração a bater na boca. A perseguição da beleza é uma corrida de obstáculos sem meta de chegada. Basta o som de uma voz para rasgar futuros. Basta uma fotografia de uma mala fechada sobre uma cama para abrir horizontes. Todos os cuidados são insuficientes. É um trabalho longo preenchido de mistérios. Se se procura controlar, escapa. Se se procura guardar, esvai-se entre os dedos. Tem de ser roubada com toda a rapidez e mantida no movimento que é só dela. Se se tenta parar, fixar, já não vale a pena. O dinheiro tem certamente as suas vantagens. Uma das poucas coisas que serve para várias. E a beleza não serve de nada. Atrapalha. Provoca desastres nas famílias, intoxica-nos até ao desmaio, não poupa nada. Devia ser proibida. É um escândalo no meio do mundo. É a causa do espantoso medo que é perdê-la. Não escolhi ser quem sou, este vício de que sou escravo. O que mais importa ninguém escolhe. Já tentei ser tantos para escapar de mim, para me desviar desta vida que me deram. E depois vem a beleza. Surpreendente ao virar de uma esquina. Um desejo marcado no ponto de encontro do aeroporto onde ficaremos para sempre abraçados. A tomar duche à minha frente. A irromper do nada. A primeira coisa que um qualquer fanatismo sabe que tem a fazer é demolir com a beleza. Com todo o direito, de todas as maneiras. A beleza semeia a desordem nas almas e nos corpos que anima. A beleza alimenta-se de uma liberdade particularmente virulenta. É impertinente. Não conhece regras. Vive da vida e de mais nada.
Se não houvesse qualquer impedimento inesperado ele visitava-a uma vez por mês. De Lisboa a Barcelona é um pulo de uma hora e um quarto. Ela esperava-o, muito esguia e direita, do lado esquerdo da saída do aeroporto. Os lábios dela, frutos vermelhos, eram um sorriso que se alcançava de longe e não tinha fim. Ele avançava para ela, os olhos enevoados de desejo, com uma ligeira mala a tira colo. Era extraordinário aquele percurso que o levava a ela, e ele fazia-o devagar, demorando os passos, para melhor poder sentir a distância, o sabor antecipado da pele. Depois o estreito abraço e o voltar a olharem-se nos olhos fixamente para se assegurarem que ainda eram eles mesmos. Procuravam não pronunciar qualquer palavra até ser inevitável porque ambos apreciavam alargar aquele estado intermédio, antes e depois do desejo completado. Falar sempre enfraquece o espírito, em particular a memória e a imaginação, misturando-o com as coisas do mundo, e para o amor não há palavras que cheguem. Por isso mantinham aquele silêncio enquanto apertavam as mãos com força olhando em frente dentro do táxi que os conduzia à parte velha da cidade. A subtil e erótica sensação de estarem tão próximos e ainda não o estarem. Depois despiam-se lentamente um ao outro no quarto branco onde só havia uma cama macia e mais nada a não ser a janela verde de estores corridos para conservar o ar fresco. Nenhum deles poderá esquecer aquela luz filtrada que os envolvia protegendo-os de todas as preocupações, deveres, arrelias. Como ele adorava os seus seios leves, as ancas altas, as pernas infinitas e os pés de uma beleza que apelidava, sem razão, egípcia. Ficavam muito tempo assim deitados nus sobre os lençóis a olharem-se de novo fixamente nos olhos, desacreditando de tudo. O grande teatro do mundo bem podia esperar lá fora. O deles pertencia-lhes por inteiro e não admitia intrusos. Então saíam para jantar num dos restaurantes favoritos e, sem querer, um deles dizia uma primeira palavra que abria o espaço para todas as outras.
Conhecera-a em Lisboa numa festa de comuns amigos em que se celebravam a si próprios. Logo na primeira noite ficaram juntos. De nada vale perder tempo com preâmbulos, jogos falsos. Depressa tiveram de se habituar a viver cada um na sua cidade. Ela tirava um curso de teatro em Barcelona, ele dava aulas de literatura clássica na capital de um império há muito acabado. O avô dela escapara da sanguinária guerra civil espanhola para o país vizinho levando unicamente dentro da cabeça um segredo precioso: como fazer rolhas de champanhe. Em Portugal o que nunca faltou foi cortiça e em dez anos já tinha três fábricas que exportavam em quantidade não só para a Europa, mas para a América do Sul e, estranhamente, para a China. Bastante mais tarde, com a revolução, aquele pequeno império desmoronou-se, quer pela morte do fundador, por incêndios provocados e ocupações selvagens ou, mais simplesmente, por má gerência dos filhos habituados ao luxo. Restavam contudo indícios de riqueza. No apartamento que dava para o Parque Eduardo VII ainda se bebia champanhe todas as manhãs ao pequeno almoço. Também restavam alguns imóveis na Catalunha, de que só ela entre os irmãos aprendera a língua com o avô que adorava e via chegar a casa às oito da manhã com um smoking impecável.
Ela olhava-se ao espelho e não dizia: eu sou, dizia: isto é. Ela, que preferiu morrer. Sempre a mesma coisa. Sim, sempre a mesma coisa, sem que no entanto se possa dizer o quê.
Ando cada vez mais intrigado com o lugar para onde vão as coisas que vivemos. Deve por certo haver algures algum registo, um filme detalhado. Que isto não é só isto, senão bastava-se. O meu pai, por exemplo, continua a viver em mim. O que mostra bem a imortalidade das almas. O que eu não percebi talvez fosse para não ser percebido. O que vivi talvez fosse para não ter sido vivido. O que matei levo-o comigo fechado dentro de um saco. Sem poder ter a certeza. Se a tivesse dava-a de bom gosto a quem ma pedisse. Eu não nasci assim louco. Eu lentamente adoeci.
É urgente elevar a pessoa à posição do espanto. É daí que se abre o mundo. Qualquer coisa possui em si o mistério de tudo e a nossa distância vai daqui para ali, e volta. Há uma frase por escrever da qual esqueci as palavras e a gramática. Uma frase que junte coisas separadas, as nuvens e as suas sombras, animais fabulosos a sensíveis plantas, breves recados a fatais desenlaces. Uma frase é um laço apertado por um verbo. Eu conjugo verbos como quem se encontra diante de um precipício. É a morte por todo o lado espelhada que me faz escrever a frase. Entretanto deparo diante de mim com uma parede falsa. Os meus olhos escondem tudo o que descobrem por detrás dela. Uma parede não basta para fazer uma casa. Uma casa é uma concha. Uma concha é uma casa. Uma concha abre-se como uma porta. Uma porta que conduz de uma prisão a outra. Há uma prisão inexpugnável. Eu nunca serei tu. Deve ser esta a frase que pedia para ser escrita aguardando pacientemente. Mas quem saberá a verdade se o que nos aproxima é o que nos mantém afastados? Em primeiro lugar o geométrico espaço, em segundo o tempo que nunca se atrasa. É assim, sempre assim. Prosseguimos de segredo em segredo as mãos atadas à cabeça. Foi sempre assim estar aqui, nesta existência extrema.
Sabe que atravessou uma fronteira mas não sabe dizer qual. Se alguém lhe perguntasse faria um esforço e talvez encontrasse não a resposta certa mas uma possível que calasse a pergunta. Mas não há quem lhe pergunte. Vai até ao espelho do quarto de banho e olha a sua cara. Tão estranho ter-se uma cara. O lugar dos olhos. O desenho dos lábios. A cor da pele. Passa água fresca sobre a cara. Não se seca com a toalha que está mesmo ao seu lado direito. Continua a olhar-se com a cara molhada. O que nos une é uma mesma ignorância. É uma frase que lhe vem com frequência à cabeça nas últimas semanas.
A sua vida parece-lhe a de uma outra pessoa. Talvez seja isso. Não poder reconhecer-se por completo no que faz, diz, deseja. Uma crescente discrepância. Uma diminuta, mas perceptível, perda de nitidez nos contornos. Como se a sua verdadeira vida se tivesse despegado da vida que leva e, com o tempo, a distância entre elas fosse aumentando e a reconciliação se tornasse cada vez mais improvável. Uma pessoa não é quem quer ser, não faz o que gostava mais do que tudo fazer, não dita a vida que a leva consigo. Talvez seja isso. O que acontece desde sempre quase sempre a qualquer um. Salvo nos momentos de paixão em que vivemos a tremenda certeza de estarmos a ser quem somos. Não é preciso que seja uma pessoa. A sua última paixão chama-se Cate Blanchet. Uma actriz de cinema australiana. Uma actriz não é bem uma pessoa. Não é forçada a ser sempre uma mesma pessoa. Muda de pessoa. Tudo lhe pode acontecer. Muito diferente da habitual ansiedade de não saber se algo vai ou não acontecer. A paixão é um engano em que nos queremos enganar mais do que tudo. Uma partida pregada pela vida que depois nos reconduz ao lugar quotidiano ao qual pertencemos e nos vai construindo e desfazendo. Dia a dia, todos os dias. O castigo de ter querido ser mais do que se é. Do que se pode. Ela pensa várias vezes em coisas deste tipo. Coisas que apelida do tipo inútil. Que não parecem ajudar. Sem aprofundar muito. Com receio de pensar demais nisso e ficar retida algures numa dúvida cheia de perigos. Põe-se a brincar com o cão. Vai lavar a loiça. Sai para a rua onde se cruzam caras e corpos sempre diferentes, embora nunca demasiado diferentes, nascidos de uma fonte inesgotável.
Trabalha como assistente de um psiquiatra. Não pode dizer que não gosta do que faz. Mais do que o trabalho, que consiste em pouco mais do que marcar as consultas, separar o correio que interessa do que não interessa, apontar obrigações e convites numa agenda, aprecia e admira aquela pessoa. O Dr. Flynn é um senhor de certa idade delicado e culto. Com frequência convida-a para tomar chá ao fim do dia. Sempre no mesmo hotel. Na esquina da terceira avenida. Se possível na mesma mesa. Tem sempre imensas histórias para contar. Repletas de detalhes. Ela gosta muito de histórias e pouco lhe importa se são verdadeiras ou inventadas. O que importa é a história. Poder viver por momentos as vidas de outras pessoas. Ausentar-se da sua. Gosta sobretudo de falar de pintura e pintores. Conheceu pessoalmente Rothko e Pollock. Antes de terem dado cabo da vida deles e dos que lhes estavam próximos. Rothko a certa altura estipulou que os seus quadros deviam ser vistos a uma distância de exactamente sessenta centímetros para o espectador poder ser irradiado pelas cores dos seus quadros. Não ver o quadro mas deixar-se tomar pelo seu espírito. Curioso detalhe.
O cão espera-a efusivamente mal abre a porta do seu duplex. Ela agarra-o no colo fazendo-lhe festas. Repete várias vezes o seu nome. O que ela sente pelo seu cão não deve ser a mesma coisa que o cão sente por ela. Com as pessoas também é assim. Quando me será permitido dizer que esta pessoa sente exactamente por mim o que eu sinto por ela? Onde encontrar a medida? Qual seria a medida? Pousa o cão no chão e diz: fica quieto. O cão obedece. Bem mais complicado seria pedir-lhe que fizesse o favor de a avisar às sete da tarde de que tem de ir à lavandaria buscar a roupa da cama. O cão é muito inteligente. Nunca pede nada que não possa ser satisfeito. Ela pega numa lista com números de telefone e telefona. Passado meia hora tocam à porta. Pode ser um sushi ou comida congolesa. Talvez ligue a televisão só para confirmar que outras coisas sem qualquer ligação entre elas continuam insistentemente a acontecer. Talvez suba de roupão depois de um duche longo e quente as escadas que levam ao lugar onde dorme. É o que faz. Se fosse possível escolher nunca teria sonhos. Não gosta de ser iludida. Nem para o bem nem para o mal. Basta-lhe adormecer e acordar. O satisfeito cão enroscado aos seus pés.
Teve na sua vida uma grande aventura. Não espera vir a ter outra. É preciso uma grande inconsciência e uma enorme coragem para viver uma grande aventura. Ela não precisa de uma outra aventura. Seria por demais cansativo, arriscado, perigoso. Sobretudo talvez deseje que não tenha sido simplesmente uma grande aventura mas sim a sua única grande aventura. Numa vida só deve haver lugar para uma aventura, comentou um dia quando estava a almoçar com uma antiga amiga do liceu. A amiga percebeu, julgou perceber ou fingiu perceber. Retomaram de imediato a conversa por outros assuntos mais vantajosos. Em certas circunstâncias corre-se o risco de ficar a pairar. É preciso retomar o movimento das palavras e dos gestos. As palavras quando imobilizadas perdem todo o sentido. Como quando são inúmeras vezes repetidas. Tornam-se ocas. Soube disto claramente quando disse a Aysha que a amava. Amo-te, disse ela naquela primeira de todas as noites. Fez-se um enorme silêncio à volta daquela palavra. Repetia a palavra e voltava a repetir como se não alcançasse o que queria. Amo-te muito. Amo-te toda. Amo-te tanto. Amo-te mais do que me é permitido. No melhor dos casos adormeciam muito agarradas. O medo de se perderem uma da outra durante o sono que tudo apaga.
Aysha desapareceu. Por detrás de um telefonema. Adeus, minha amada. Tenho de partir. De nada serve explicar. Pensarei em ti de noite e de dia. Um acontecimento brutal. O que importa é imprevisível. Parece-lhe uma certeza. Mas não tem de ser brutal. O começo e o fim. O amor. Não se sabe quando começa, não se sabe quando acaba. Mas não tinha de ser assim. A violenta Aysha. Na noite em que a conheceu levava um gorro de pele na cabeça e Aysha tinha também um gorro de pele na cabeça. Foi assim que se conheceram quando entraram no restaurante e de imediato souberam que eram elas. Foi esse o tema das primeiras frases que trocaram. Frases sem importância. O teu gorro é muito parecido com o meu. Posso experimentar o teu? É lindo. Tu és linda. Era inverno. Fazia muito frio lá fora. Nevava e deixava de nevar. Os flocos de neve batiam nas enormes janelas de vidro. Ambas precisavam de calor. Ambas uma longa sede de amor. Nenhuma delas sabia o que quer que fosse sobre a outra. Talvez fosse isso. O homem rico que as convidara para jantar chegou três quartos de hora atrasado e não arranjou uma desculpa. Elas não se importaram. Tinham-se sentado ao balcão e pedido Bellinis atrás de Bellinis. Uma mistura de champanhe e um pouco de sumo de alperce branco. Ela reparou com um ligeiro arrepio que o tom de pele de Aysha era muito semelhante ao de um alperce branco. Apeteceu-lhe tocá-la com a ponta dos dedos. O homem rico era parvo. Pretendia seduzir as duas ao mesmo tempo. Para as foder na mesma noite. Se possível na mesma cama. Ela ria e Aysha ria e homem muito rico ria por outros motivos. Ele nem se apercebia de que falar do seu poder em conseguir convites impossíveis para a abertura do novo Nobu, de relógios de pulso feitos à medida, de expedições exclusivas no Tibete, eram coisas que não lhes interessavam minimamente.
Não se pode dizer que foi amor à primeira vista. De modo algum. No começo tudo foi longo, demorado, avançando de descoberta em descoberta. Nenhuma podia adivinhar ser possível vir a amar não o diferente, mas o mesmo, o semelhante que ferozmente se atrai. Quando se beijaram pela primeira vez foi mesmo a primeira vez que beijaram. Nunca nada antes. A boca de uma mulher nada tem em comum com a boca de um homem, murmurou Aysha. Deviam ter nomes diferentes. A boca de uma mulher é mais macia, mais terna, seguramente mais quente. O que interessa é que aquele beijo não queria acabar de ser dado. Como se por absurdo temessem libertar-se da boca uma da outra, que as agarrava à vida. Depois foi uma paixão desvairada. Durante meses viveram uma para a outra num supremo egoísmo. Durante meses procuraram tudo uma na outra, quiseram mais do que tudo ser a mesma inquietação, uma igual ânsia, um eterno alívio do corpo e da alma. Sem já saber quem era quem não paravam de experimentar as delícias que os corpos oferecem quando são tratados como sagrados. Horas sem fim. Até ao desmaio. Em casa comiam frente a frente, cada uma oferecendo a comida com os seus dedos à boca da outra. Passavam horas atravessadas na banheira acrescentando água quente e acendendo outra vela. Fazendo-se carícias.
Tudo acabou bruscamente. Brutalmente. Na segunda semana da primavera. Ela não percebeu porquê. Se soubesse porquê talvez não ajudasse nada. Deu consigo mais de uma vez a chorar muito baixinho dentro da sala escura de um cinema vazio. Tudo lhe fazia lembrar a ausente. A lista dos restaurantes favoritos, o copo de água ao lado da cama, uma súbita esquina da cidade em que parecia ser ela e nunca era ela. Doía-lhe por todo o lado. A alma no corpo a latejar. O pai, que a visitou um dia, ordenou-lhe que consultasse de imediato um psiquiatra. Um especialista em curar desarticulações da alma. Males de amor e coisas dessas. Ela ainda se lembra das palavras do pai. Não das suas se as houveram. Foi assim que ela conheceu o seu patrão e é por isso que toma anti-depressivos todas as manhãs como uma hóstia consagrada.
O pai é um problema. O pai sempre foi um problema. A mãe é como se não existisse. O pai é presidente de uma companhia de seguros em Portland. Voltou a casar-se com uma secretária. O que ela achou nojentamente previsível. Ela ama o pai, um homem belo e encantador. Quando vão almoçar a um restaurante as pessoas viram-se ligeiramente e ouvem-se curtos comentários. Parecem amantes. Ela sente um grande orgulho, uma vaidade. Quando acaba o almoço sente vergonha de sentir o que sentiu. A mãe não se voltou a casar. Nasceu na Escócia. Viaja constantemente com um grupo de amigas. Manda postais e flores e presentes. Nunca se entenderam. Há certas coisas que se intrometem entre as pessoas mais próximas e as impede de falar, de se conhecer nem que seja um pouco. Ela pensava muitas vezes nisso. No que teria entre elas acontecido, ou devia ter acontecido e não aconteceu. Sem nunca conseguir chegar a uma conclusão. O único irmão era médico e vivia com a família numa cidade tão longe, que nem era preciso inventar desculpas para não se encontrarem. O telefone tocava e a secretária do irmão dizia-lhe que ia passar a chamada. Só para verificar que tudo estava bem. A mãe adorava o filho e competia com a filha. O costume. O mais natural. Talvez fosse isso. Já nem se encontravam no Natal, nem no dia de acção de graças. Os cronologicamente estipulados encontros familiares tornaram-se tão dolorosos que desde há quatro anos decidira passá-los no estrangeiro. Num país onde não se celebrasse o Natal. Israel, Tunísia, Tóquio, Nepal. Por vezes nesses lugares onde ninguém, nem ela, sabia perfeitamente quem era, sofria o que chamava momentos de ânsia incontrolável. Encontros eróticos rápidos, intensos, promíscuos. Por exemplo. Dois rapazes imberbes no norte de África. Lindos. Gostou de lhes ensinar tudo ou julgar que lhes estava a ensinar alguma coisa. Fica só uma memória na pele e nada que doa na alma. Passado o Natal pode voltar para casa. Para a inquieta solidão. E nunca nenhuma mensagem da Aysha.
Ela gosta daquela cidade onde a ninguém é permitido olhar nos olhos o transeunte que passa e se cruza. Ela ama aquela cidade onde as livrarias ficam abertas pela noite dentro, onde há cafés que nunca fecham senão durante uma hora para a limpeza. Ela odeia aquela cidade onde não se conhece ninguém que não seja por motivos práticos. Uma cidade onde o seu amor nunca volta a aparecer com aquele sorriso inescrutável de menina perversa. No mês passado a lavandaria que ficava a dez metros de sua casa transformou-se de um dia para o outro num restaurante coreano. Aysha gostava de dizer que naquela cidade não bastava dizer onde, mas também quando. Tudo gira a uma tal velocidade que é admirável como cada um sabe encontrar o caminho de casa. No seu apartamento tem vários móveis preciosos que herdou da avó materna. Às vezes perde-se a divagar sobre o que aqueles móveis terão presenciado, formas de vida que mal se deixam adivinhar, impossíveis de recuperar. Como decorreria a vida num castelo da Escócia? Numa pequena gaveta de um deles guarda todas as mensagens de amor de Aysha. Nunca abre essa gaveta.
Claro que há homens que se interessam por ela. Encontram-se por todo o lado. Na fila dos correios onde vai buscar uma encomenda da mãe que está na Patagónia e envia os presentes de antemão para não exagerar no excesso de peso das bagagens. Dois pacotes de quilo de chá mate como se ela soubesse o que fazer com chá mate. No café da livraria onde várias pessoas se sentam numa mesma mesa depois de pedir licença e um homem a olha meditativamente com um livro aberto entre as mãos sem que ela consiga decidir se ele está a pensar no livro ou no sexo dela. Diante de um piano vertical estranhamente abandonado sobre um passeio onde alguém experimentava uma melodia de Schubert. Sabe porque perguntou. Trocam-se números de telemóvel depois de algumas curtas frases. Telefonam-se passados poucos dias. Combinam um local e uma hora. É então que surgem os problemas. Leva calças, saia ou vestido? Aceita o convite para jantar ou será mais prudente ir a um cinema? Quando é que deixará que ele lhe dê um primeiro beijo e depois de dado quando e sobretudo como parar? Diante do espelho da casa de banho não sabe se há-de pintar ou não os olhos. Se deve pôr ou não um gancho a segurar-lhe o cabelo. Então decide telefonar a dizer que lamenta muito mas que se levantou uma dúvida imprevisível e não o pode encontrar. Não é preciso mentir. Quando nos dias seguintes lhe aparece um certo nome no mostrador do telemóvel põe-no no silêncio. Não gosta de mentir. Mentir é fazer mal a si própria. Descobriu com espanto muito nova. Por mais que se queira uma pessoa não é capaz de mentir a si própria. Por vezes enche-se de coragem. Convidou o pianista para sua casa e depois de beberem uma garrafa de champanhe tinto da Crimeia foram deitar-se sobre a cama larga do quarto. Ele perguntou se a podia beijar. Ela disse que não. Ficaram horas assim. Silenciosos. Lado a lado. A olhar o tecto com infinitas estrelas cintilantes. Estava de passagem e nunca mais o viu. Chamava-se Martin. Era holandês. Não fixa o nome de todos os outros que a querem foder. Há uma solidão que pouco a pouco a penetra e se torna doce e melancólica como o pôr do sol sobre um lago entre escarpadas montanhas.
A vida é rápida e surpreendente. Sabe isto mais pelos outros do que por si. Não param de chegar notícias. A fractura da anca de um dos filhos do seu vizinho. O suicídio de uma paciente do consultório. A prima que subitamente se tornou famosa por ter ganho um prémio como jornalista. Para não falar nas notícias do jornal que lhe é posto todos os dias diante da porta de casa. Antes ainda se conseguia perceber alguma coisa, agora já nada há para entender, diz ela mal chega ao consultório. O Dr. Flynn acena que sim com a cabeça e baixa os olhos como se tivesse entristecido bruscamente. Convida-a para almoçar no restaurante do hotel do costume. Os criados são silenciosos. A vista do último andar impressiona. Não trocam uma palavra. Não por já nada terem para dizer um ao outro mas porque se entendem sem precisar de falar. Talvez seja o amor entre duas solidões a tentarem vencer o vazio que as separa, passa-lhe pela cabeça. Não sabe exactamente o que querem dizer aquelas palavras. Se o Dr. Flynn tivesse menos trinta anos talvez fossem amantes e felizes. Ao descerem no elevador ele diz: gostaria de ter tido uma filha como tu. Ambos olham em frente para a porta em chapa de zinco que lhes espelha foscamente os corpos e que de um momento para o outro se vai abrir. A porta abre-se. As sombras saem. Trinta anos. Trinta translações elípticas do planeta chamado Terra em torno de uma estrela menor chamada Sol.
Os domingos são os dias mais difíceis. Arquitectar todo o tempo em redor da necessária ida à lavandaria. A cidade foi em grande parte esvaziada. Por vezes vai para o parque e fica horas a seguir os patinadores solitários a dançarem com headphones na cabeça. A tentar adivinhar pelos gestos o tipo de música. De vez em quando dói mesmo. A família que nunca terá. As papoilas breves. E de novo Aysha que ela não sabe onde dorme, com quem respira. Estará naquele preciso momento a pensar nela ignorando que também ela o faz? Aysha pode ter desaparecido para um lugar que ninguém sabe onde fica. Nem mesmo ela. No último telefonema disse explicitamente: tenho de voltar urgentemente a Teerão. A forma verbal é ambígua. Temporalmente imprecisa. Ir e voltar. Ir e ficar. Ir e fugir. Não disse mais nada. Talvez não fosse preciso dizer mais nada. Ela é muito corajosa. Não chora sempre que lhe apetece. Trinca um lápis com força. Mastiga um comprimido violeta. Mete-se num cinema sem procurar saber o nome da película. Sai do cinema e quase corre pelas ruas. Por vezes a vida é tão confusa que a confusão a persegue. Tudo podia ser diferente e tudo é exactamente como é. Não sabe como vai aguentar e aguenta. Em casa o cão espera por ela à hora a que voltar e não se mostra insatisfeito.
Ultimamente tem uma nova amiga. Digamos assim. É uma doente do consultório. É bom ter alguém com quem ir à opera, ver uma exposição de fotografia numa nova galeria, falar sobre a imponderabilidade dos homens à mesa de um café. Conhecemo-los num instante e eles nunca nos chegam a conhecer, diz a nova amiga. Não concordam nisso e em muitas outras coisas. Tudo menos discutir. Na verdade nem sequer se interessam em conhecer-se. A nova amiga deixa de ir às consultas e alguém desaparece mais uma vez. Talvez tenha mudado de cidade. Talvez tenha mudado de amante. Talvez consulte outro psiquiatra. Não vale a pena pensar demais. Mas a solidão torna-a cada vez mais inquieta. Acorda a meio da noite com pesadelos. Vai de noite com o pai de mãos dadas por uma estrada estreita e vazia e de repente o pai transforma-se num daqueles pretendentes viciados em sexo e dinheiro que a começa a abraçar com luxúria enquanto ela grita. É o grito que a acorda. Agora tem medo de voltar a adormecer e retomar o pesadelo. Se morrer agora dentro do seu apartamento quando é que alguém dará por isso? Só o seu cão que não aprendeu a fazer chamadas para o 911. Começou a esquecer-se de telefonar uma vez por semana ao pai. A mãe está no Quénia com as amigas a fotografar animais que já não existem. Aysha nunca mais voltará a tocar à campainha do apartamento com grande urgência. A urgência do amor. Aos domingos, sobretudo aos domingos, sente uma falta irremissível.
Dia sim, dia não vai nadar ao Equinox. Um clube luxuoso para o qual não teria dinheiro não fosse este mais um presente da mãe. Gosta de nadar. Gosta de pensar quando está a nadar. O movimento dos braços, o bater dos pés. Sempre o mesmo. Nada mais para fazer. Pensa na impenetrabilidade dos corpos. Pensa na possibilidade de alguém, ela própria, de repente se começar a dissolver. Pensa que dentro de todas as coisas há outras coisas e dentro dessas outras ainda. Só não sabe se há-de continuar assim indefinidamente. Se chegará uma altura em que uma coisa já não tenha nada lá dentro. Se assim for todas as coisas são feitas de vazio. Ela própria feita de vazio. Sai da piscina e vai para os balneários. Repara no movimento dos corpos das outras mulheres. Segue um corpo a andar sobre o mármore frio. A beleza é um problema que a atrai. No duche há três marcas da sabão líquido. Dois champôs e dois condicionadores para o cabelo. Não consegue escolher nenhum. Basta-lhe sentir a água a escorrer pelo corpo, um prazer raro, suave. Volta para casa, deita-se sobre o sofá, agarra no livro que está a ler há meses. Dostoievéski. Crime e Castigo. Volta atrás onze páginas. Prefere reler a ler. Não quer chegar ao fim. O fim é sempre triste. Por vezes adormece com o livro nas mãos. Por vezes vai à janela ver as janelas dos prédios que circundam o seu. Cada janela é uma alma. Numa das janelas há um telescópio branco. Pensa que gostaria de conhecer a pessoa que vive naquela janela, uma pessoa que habita numa estrela a milhões de anos luz da sua. Uma breve tontura no tempo e no espaço. O cão ladra. É preciso levá-lo à rua. Os excrementos são apanhados por uma luva de plástico fino que depois se vira do avesso. Dá uma volta ao quarteirão. Dá uma segunda. Volta para casa. Cruza-se com o vizinho cujo filho pequeno partiu a anca. Há-de ficar bom e voltar a jogar à bola. Não quer pensar em Aysha. Pensa em Aysha. Na cama, no escuro, abre o sexo vermelho com os dedos e passados incalculáveis minutos grita. Como se tivesse corrido o risco de ser afogada.
Não sabe decidir se foi ou não feliz em criança. Sabe que é um enorme privilégio poder considerar-se feliz ou infeliz. A felicidade é um luxo impossível para a maioria das crianças que nasce. Talvez tenha sido feliz. A casa de madeira perto do lago. Os esconderijos na floresta. Os lanches com os primos numerosos. A canoa de muitas aventuras interditas. O que sabe é que em qualquer parte dentro dela houve sempre lugar para uma espécie de solidão. Preferia brincar sozinha, esconder-se sozinha, sentir medo sozinha. Do irmão, sete anos mais velho, só consegue recuperar algumas imagens desfocadas no tempo e no espaço. Lembra-se com grande nitidez da mãe a chorar. E dos primeiros beijos. Frequentemente.
Não quis estudar. Queria fugir de casa. A contar os dias. Logo que pôde foi viver para a cidade onde ninguém conhece ninguém. É essa a verdade. Ninguém conhece ninguém. O trabalho de que mais gostou foi numa galeria de arte. Na parte sul da cidade. Entravam miúdos de chinelos e calças rotas que compravam quadros que custavam fortunas. Nunca se deve julgar alguém pelo seu aspecto. Uma pessoa está sempre a enganar-se. Foi o que logo aprendeu. Passados poucos meses, quando já se sentia perfeitamente ambientada àquele pequeno mundo em que a magia tem o seu preço, o dono da galeria convidou-a para jantar. Depois convidou-a para ir passar um fim de semana a Miami. Encontrou um novo emprego numa biblioteca pública. Foi também aí que encontrou o seu primeiro verdadeiro amante. Um imigrante russo de São Petersburgo que tinha sido professor de filosofia e sabia tudo sobre Dostoiévski. Agora conduzia um táxi. Todas as terças-feiras ia buscar um livro de um autor russo traduzido para aprender a língua da sua nova pátria. Ninguém está interessado em aprender marxismo-leninismo, repetia-lhe ele a sorrir, e acelerava. A delicadeza das pálpebras, o branco dos dentes, os músculos do corpo, o sexo que ela não era capaz de agarrar com uma só mão e era firme como uma âncora no mar. É assim que ela se lembra dele. Por partes. Desconjuntado. Foi uma espécie de amor, não o amor por inteiro. Não consegue decidir quem deixou quem. Não é importante. O grande privilégio era o poder ser dona de si própria. Ou pelo menos isso julgar. Acabo isto hoje para poder começar aquilo amanhã. Então sentia que avançava por um caminho que era só dela, feito por ela e para ela. Há muito tempo numa outra espécie de vida . Agora parece-lhe que anda às voltas e às voltas e que já não há caminho direito que a leve a qualquer parte.
Já pensou em sair da cidade, em mudar-se para outra cidade. Mas logo desiste. Lembra-se dos versos do poeta russo assassinado pelos bolcheviques que o seu taxista repetia. “Não é longe Esmirna e Bagdade, mas é duro navegar, por todo o lado as estrelas são as mesmas”. Não é bem isso. É outra coisa. É ali que ela se sente em casa. Difícil dizer o que distingue uma pessoa sentir-se em casa de não se sentir em casa. Devem ser muitas coisas. Muitas delas mesquinhas, muitas delas insignificantes e umas poucas importantes. Quando lhe perguntam onde nasceu diz que nasceu ali, naquela cidade. Não é bem mentir. Uma pessoa nasce várias vezes. Em casa dos pais não estava certamente em casa. Quando chegou à estação de comboios desta cidade sentiu-se de imediato em casa. A estação de comboios era uma enorme catedral onde comungavam inúmeros destinos. Tinha chegado por fim a casa. Era ali que se cumpriria o seu destino. Ignorava de onde lhe vinha essa certeza que a enchia de coragem e júbilo.
A cidade é deveras fascinante. O que fascina combina em partes variáveis o maravilhoso e o ameaçador. Já deu consigo a voar sobre os passeios com a inebriante sensação de ser só sua, de lhe pertencer por inteiro, de ter sido para ela que foi erguida até tocar os céus. No dia 11 de Setembro estava com o pai em Portland. Decidiu voltar de imediato. O pai pediu-lhe que não o fizesse. Não. Tinham atacado a sua cidade, tinham-na ferido no seu próprio corpo, tinham tentado reduzi-la ao medo. Pela primeira vez sentiu algo que demorou a identificar até lhe encontrar o nome. Vingança. A justiça não seria possível. Requer leis aceites por ambos os lados em litígio. Ninguém pode agredir a minha cidade, esconder-se por detrás de muitas máscaras e ficar impune. Foi assim que pensou naquela tarde repetidamente. Ficou vários dias perturbada com aquela palavra a fazer eco dentro da cabeça. Vingança. Até conseguir expulsá-la. Até aceitar não ser possível exercer vingança e permanecer justo. Até considerar ser preferível sofrer uma injustiça do que cometê-la. E no entanto qualquer coisa tinha sido rasgada sem remédio para sempre.
Sente várias vezes medo. Muito concreto ou inteiramente indefinido. No jornal de ontem vinha uma história sobre uma senhora de setenta e um anos de idade que tinha dado quatro voltas à cidade no metro. Até alguém descobrir que já era cadáver. Num dos cantos do seu quarteirão depois da meia-noite juntam-se travestis. Quando chega um pouco mais tarde não pode deixar de reparar. Fica profundamente perturbada. Não consegue compreender. Mas pode aceitar. Não sente nojo ou repulsa. Sente compaixão. Mas não consegue pôr-se no lugar deles. Claro que só haver dois sexos é uma estúpida economia da natureza. Devia haver muitos mais. Ali é diferente. A absoluta revolta da alma contra o corpo. Uma alma nada tem a ver com o corpo que habita, deve ser isso, pensa ela quando não consegue adormecer. A alma mais bela e perfeita num corpo informe e repelente. Uma ideia que se arrisca a tornar obsessiva. Desce as escadas para ir ao quarto de banho tomar dois comprimidos que a ajudem a terminar aquela tragédia.
Sobre o colchão pousado no chão, um lençol branco a cobrir-lhe o corpo nu, fumava lentamente, a cabeça de lado, repousando sobre a almofada.
As coisas não iam bem, as coisas não iam bem há muito tempo, e agora era pior ainda. Porque ele tinha-se esforçado para que fosse de outra maneira, tanto quanto lhe tinha parecido possível, mas, tarde ou cedo, acabara por desistir. Ficaria para a próxima.
Só que agora não haveria outra vez. Ele tinha tentado mas não conseguira, de nada valia continuar a mentir-se. Nem encontrar um qualquer sentido que unisse todo o tempo desperdiçado conseguia. Talvez bastasse, mas não conseguia.
Como é que de um momento para o outro deixara de haver tempo a mais para deixar de haver tempo? Perguntava e não respondia. Continuava a fumar.
Seria a mentira? Talvez. Talvez fosse a mentira que o tinha levado até ali. Ninguém nasce mentiroso, uma pessoa aprende a mentir. Desde novo sentira uma irresistível atracção por essa possibilidade reservada aos humanos. Nada de mais simples e difícil. Mentir é um jogo da imaginação e ele lembrava-se do orgulho que tinha em se esconder nesse labirinto, como quem sente o prazer de uma vitória sobre si próprio.
Quis lembrar-se da primeira vez que tinha mentido. Mesmo que se lembrasse de que lhe serviria? Só agora sabia que a mentira pode matar. Usou o cigarro que terminava para acender o seguinte e aspirou com força o fumo que não lhe soube a nada.
Apercebia-se da solidão em que desde sempre se encontrara, situação que se torna insuportável quando pensar nisso não faz senão piorar as coisas. Tornara-se assim urgente pensar o menos possível. Frequentava assiduamente um ginásio e enquanto lhe doíam os músculos não pensava em nada. E os vícios sempre ajudam porque nos transportam para lugares que julgamos só nossos. Eram a sua ocupação nocturna. Todas as outras horas eram de preocupação.
Espantava-o a resistência dos humanos que inutilmente prosseguiam com uma heroicidade indistinguível da inconsciência, e no seu conjunto a humanidade parecia-lhe uma massa amorfa que persistia sem destino nem perdão. E ele um minúsculo ponto entregue a si próprio, irresponsável pelo traço ínfimo que desenhava, mais cedo ou mais tarde interrompido. Era nisto que pensava, se bem que não por estas palavras.
Procurou um consolo dizendo-se, os olhos fechados, que a aflição é um estado de graça porque na aflição nos aproximamos do que não somos e isso pode salvar. Era preciso livrar-se da situação em que se encontrava, nada mais. Mas não podia. Se se levantasse cairia. Se abrisse os olhos sentiria a tontura. Na véspera tinha bebido demais.
Era mais uma vez preciso safar-se e não há mais eficiente maneira do que a de alterar a estúpida e brutal realidade das coisas, usar como de uma arte essa extraordinária possibilidade que ele tão bem conhecia quando ainda não sabia que a mentira pode matar.
A cinza do cigarro caiu em cima da almofada branca deixando uma mancha que ficou a olhar. Agora era já tarde para tudo. Agora a verdade, mesmo que a soubesse dizer, seria cruel, inútil. Nada, nem ninguém poderiam impedir o caminho que conduzia à morte a pessoa que amava e o tinha feito, sim, tinha sido essa a última vez, tentar mudar de vida e acreditar, sim, fora essa a última vez, que as coisas iam correr bem. Mas não foi possível. Talvez tivesse sido possível antes de se apaixonar, mas antes de se apaixonar nem ele queria que as coisas fossem como não eram. Depois era já impossível. Depois de se apaixonar, e ele conseguiu reaver da memória o lugar e o tempo exactos, como numa fotografia, em que sentiu a paixão chegar e tomar conta de si, depois já não podia dizer a verdade. Dizer a verdade seria perdê-la, afastá-la para sempre o que não conseguia suportar porque a amava e a solidão não parava de crescer, de o sufocar. De qualquer modo seria já tarde demais, repetiu uma vez mais.
O que era preciso era continuar. Continuar a mentir o mais perfeitamente, sem qualquer deslize, usando todos os recursos da imaginação, mas agora sem o antigo prazer de derrotar a realidade, antes uma angústia cada vez maior a crescer-lhe no peito, o que o obrigava a procurar a alívio nos químicos que minuciosamente doseava, porque nada devia transparecer na sua cara que o pudesse trair. Era preciso mentir sobre a mentira e continuar. Sentia-se esgotado, mas a paixão fazia-o continuar. Se não há uma verdadeira vida também não pode haver uma verdadeira morte. Se calhar teria sempre de continuar. Este pesadelo fê-lo estremecer e abrir os olhos que julgava abertos. Escurecera. Procurou o interruptor do candeeiro e uma luz azulada encheu o quarto. Que horas seriam? Ela não devia tardar.
Levantou-se de um pulo, abriu as torneira do duche, foi à cozinha buscar um copo de água e, de pé, engoliu quatro comprimidos. Ele ia aguentar. Nada era verdade. A água corria. Ele tinha de continuar.